Até onde vai a criminalização da pobreza?

02/09/2012 13:57

Por Zé Maria*, do Blog da Folha/PE

A Folha de São Paulo estampou em sua primeira página, dias atrás, a foto de uma menina, Júlia Rafaela, de apenas 7 anos. A foto ilustrava a reportagem que tratava do despejo efetuado pelaPolícia Militar, a pedido da prefeitura, que desalojara a família da pequena Júlia, e dezenas deoutras, de um hotel abandonado que tinham ocupado. Júlia não estava conseguindo ir à escolapela situação em que ficara sua família e as demais, dormindo em barracas numa calçada docentro da cidade, exposta ao frio do inverno paulistano. O hotel? Ora, continua abandonado,mas para a prefeitura e para a especulação imobiliária é melhor assim, vazio, do que abrigandofamílias que não têm onde morar.

Cenas como essas deveriam nos fazer a todos nós, seres humanos, refletirmos acerca da
natureza da sociedade em que vivemos. Trata-se de uma injustiça tão flagrante que é difícil
crer que seja vista e tida como situação normal, e ainda por cima, protegida por lei. Qual o
crime que a família de Júlia Rafaela e as demais cometeram para serem tratadas com tamanhabrutalidade pelo Estado? Estavam lutando pelo direito a moradia. Mas isto não é direito detodos garantido na Constituição Federal? Porque então a polícia não interpela as autoridadesque deveriam assegurar a estas famílias o direito a moradia, ao invés de despejá-las na rua, ao relento?

Se olharmos em volta, vamos ver que este caso não é isolado. Pelo contrário, trata-se cada vez
mais de uma rotina dura e cruel, de criminalização da pobreza em nosso país. E isso não se dá
apenas através dos despejos que, atendendo aos interesses da especulação imobiliária ou dos
grandes eventos (Copa, Olimpíadas, etc), são cada vez mais comuns e violentos. Para não me
alongar cito apenas dois outros exemplos.
Alguns meses atrás os noticiários da grande mídia foram tomados pela revolta dos operários
da construção pesada que trabalham nas obras das usinas de Jirau e Santo Antonio, em
Rondônia. Foram semanas inteiras de paralisação das obras, e de intensa mobilização dos
operários. Os barracões onde estes trabalhadores eram amontoados como bichos pelas
empresas, a título de alojamento, foram incendiados. A despeito de o Ministério Público
do Trabalho e de Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho terem constatado no local um
ambiente de total desrespeito aos direitos mais básicos dos trabalhadores por parte das
empresas, quem foi chamado para resolver o problema foi a polícia.

Operários que se revoltaram entre outras coisas porque eram agredidos fisicamente pela
segurança das empresas, foram então espancados pela polícia. Muitos trabalhadores estão
desaparecidos até hoje, vários presos, pelo menos 12 deles processados criminalmente, e
há dois operários presos até hoje no presídio de Urso Branco em Rondônia. O crime que
cometeram? Lutar para serem tratados como seres humanos, trabalhadores, e não como
escravos.

O descumprimento dos direitos trabalhistas e humanos dos trabalhadores que vinha sendo
praticado pelas empresas, por outro lado, segue livre leve e solto. E por incrível que possa
parecer, depois de tudo que ocorreu, as autoridades estaduais e federais não tomaram a
decisão de instalar na região, ou dentro da obra mesmo, uma delegacia do Ministério do
Trabalho para fiscalizar e garantir o cumprimento por parte das empresas de suas obrigações
para com os operários. Foi instalada, e está em pleno funcionamento, uma delegacia de polícia
para vigiar e reprimir os trabalhadores. Não, não estamos falando de algo ocorrido no início do

século passado, antes ainda da vigência da CLT. Estamos falando de algo que está acontecendo
em 2012, sob governo do PT.

Deixemos a região norte, e vamos ao centro sul, mais precisamente no Rio de Janeiro, onde
está o outro exemplo que ilustra bem o assunto em pauta. No Rio, mais precisamente dentro
da UFRJ, maior universidade federal do país, está instalado o CENPES – Centro de Pesquisa
e Desenvolvimento da Petrobras, lugar de excelência científica, digno do chamado primeiro
mundo. Pois bem, dentro deste Centro de pesquisa há um restaurante que, por sua vez conta
com trabalhadores terceirizados que são encarregados da limpeza do mesmo. Dias atrás o
chefe encarregado do local resolveu submeter os trabalhadores da limpeza a uma revista no
momento em que deixavam o local de trabalho, no termino de sua jornada. Encontrou-se
restos de comida nas mochilas de três trabalhadores. Restos de comida que seriam jogadas
fora, pois eram sobra do almoço servido mais cedo.

A polícia foi chamada e os três foram presos. Acusação? Roubo. Corre-corre, desespero das
famílias, consegue-se pagar a fiança e os três são libertados. Passados alguns dias, como
os três trabalhadores – por falta de condições e de esclarecimento – não cumpriram os
procedimentos legais previstos em lei para a situação em que se encontravam, nova ordem de
prisão. Dois conseguem refugiar-se, mas um deles é novamente preso. Está neste momento
na penitenciária de Bangu. Seu crime? Pegar alguns pedaços de galinha, que seriam atirados
no lixo, para levar para casa, para alimentar sua família. Este cidadão está na cadeia, na cidade
maravilhosa, enquanto o ex-senador Demostenes Torres exerce garbosamente seu cargo
de “promotor de justiça”, em Goiás.

A este ponto chegamos. Até onde mais?

*José Maria de Almeida é metalúrgico, participa da Coordenação Nacional da CSP-Conlutas e é
presidente nacional do PSTU

Tópico: Até onde vai a criminalização da pobreza?

Nenhum comentário foi encontrado.

Novo comentário