O desastre ecológico da China

20/05/2012 11:06

Não há como exagerar o impacto ambiental do assombroso crescimento da China das últimas décadas. Um capítulo do próximo livro de Judith Shapiro, maior autoridade em meio ambiente chinês, narra o que pode ser feito - já - para diminuir o estrago

Judith Shapiro*, do Planeta Sustentável

Os enormes desafios ambientais da China são importantes para todos nós. As escolhas do Partido Comunista, do governo e do povo chinês influenciam não somente a saúde e o bem-estar do país mas o futuro do planeta. A China afeta em escala global a mudança climática, a destruição da camada de ozônio, a perda de biodiversidade, a desertificação, a chuva ácida, os preços das commodities, a atividade de pesca, as migrações da vida selvagem e uma série de outros desafios internacionais. A expansão econômica, o consumo de energia e a escassez de terras aráveis chinesas acarretam problemas ambientais em outros países - do Canadá, onde as areias betuminosas em Alberta estão sendo exploradas com o mercado chinês em mente, passando pelo Quênia, onde vastas áreas de terras agrícolas pertencem hoje a chineses, ao Sudeste Asiático, cujas atividades estão sendo afetadas pela construção de barragens nos rios Salween e Mekong, na China.

O fato é que a China se tornou um grande competidor internacional por recursos naturais. No entanto, a imensa "pegada ambiental" chinesa é decorrência, em parte, da exportação de custos do consumo do mundo desenvolvido: as matérias-primas que a China extrai, não só no próprio país como no exterior, com frequência terminam em produtos que são vendidos em lojas no mundo desenvolvido. E, depois que as pessoas os consomem, o lixo gerado é regularmente reexportado para o mundo em desenvolvimento como parte do comércio ilegal de lixo tóxico. Além disso, a degradação ambiental e o desflorestamento provocados pela extração de recursos naturais ocorrem muitas vezes em países distantes do mundo em desenvolvimento. O Estado chinês posicionou o país para um crescimento econômico explosivo, e muitos chineses estão colhendo os benefícios de morar no centro manufatureiro global. Mas os cidadãos comuns estão suportando o maior fardo da poluição, pois sofrem os impactos negativos da produção - com menor qualidade de vida, vulnerabilidade a doenças e perda de longevidade. Eis alguns exemplos chocantes das implicações transnacionais dos desafios ambientais chineses.

A poluição de material particulado no ar (poeira) na China é regularmente medida nos estados americanos da Califórnia, do Oregon e de Washington e no oeste do Canadá. A China é a principal fonte de deposição de mercúrio no Oeste americano, um lembrete marcante de que os problemas ambientais não respeitam fronteiras políticas.

As barragens que a China está construindo nos rios Mekong e Salween afetam o abastecimento de água de países como Laos, Camboja, Tailândia, Viet¬nã e Mianmar. Os cambojanos temem que os lagos sequem e prejudiquem a pesca, sua principal fonte de proteína, enquanto os vietnamitas acham que não terão água suficiente para sustentar a produção agrícola e outras atividades básicas. A construção de inúmeras represas na China pode colocar em risco o abastecimento de água para a população de Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh e Cazaquistão.

O crescente apetite do povo chinês por carnes exóticas, partes de animais e plantas coloca em risco espécies raras e ameaçadas. A demanda chinesa por partes de rinocerontes, tigres, ursos e tartarugas, para citar algumas criaturas ameaçadas, é sentida em muitos países asiáticos - na verdade, em todo o mundo. Os tubarões, cujas barbatanas são retiradas para o preparo de sopas, estão em declínio e são capturados em lugares remotos, como as ilhas Galápagos.

Desde as cheias do rio Yangtzé, em 1998, quando a China proibiu a derrubada de árvores nas cabeceiras de seus principais rios, cresceu dramaticamente a importação chinesa de madeiras de lei exóticas da Indonésia, de Mianmar, do Camboja e de outros países com florestas tropicais remanescentes. A proibição aumentou a pressão sobre algumas das últimas florestas nativas do mundo, em parte para alimentar o mercado exportador de móveis para os Estados Unidos e outros países desenvolvidos. A proibição do corte de árvores na China também causou um enorme impacto nas florestas do extremo oriente russo, o último reduto do tigre siberiano, e em lugares como o Canadá, cuja indústria madeireira está se recuperando graças a seu novo grande cliente.

A precipitação de chuva ácida decorrente das emissões de dióxido de enxofre, fenômeno para o qual a China contribui decisivamente, destruiu florestas no Japão e na Coreia do Sul. Esse é um ponto nevrálgico nas relações diplomáticas no nordeste da Ásia - ali, metade da chuva ácida é causada pelas usinas termelétricas a carvão e pelos escapamentos dos carros chineses.

Os investimentos internacionais da China em petróleo, gás e minerais alimentam atividades extrativas nocivas ao meio ambiente em lugares remotos, como Ásia Central, Equador, Sudão e Irã. Programas chineses de ajuda externa facilitam essas atividades, levando desenvolvimento para ecossistemas frágeis e contribuindo para a atual grande onda de extinção de espécies em todo o planeta.

NOVA LÍDER MUNDIAL

A China ultrapassou os Estados Unidos como o maior emissor mundial de dióxido de carbono e de outros gases de efeito estufa. Ao lado de outros países emergentes, a China argumenta que suas "emissões de sobrevivência" não são comparáveis às "emissões de luxo" dos países desenvolvidos. Alega que as nações ricas, que desfrutaram dos benefícios da queima de combustíveis fósseis, deveriam arcar com os principais custos da salvação da infraestrutura atmosférica global que sustenta a vida. Mas, mesmo em termos per capita, as emissões chinesas estão crescendo dramaticamente, aumentando as pressões para que o país deixe de ser tratado como uma nação em desenvolvimento. A crescente classe média chinesa, como na Índia e em outros países em acelerado desenvolvimento, está consumindo mais - aliás, muito mais. Um exemplo disso é a demanda explosiva por aparelhos de ar condicionado, revertendo parte do movimento favorável para evitar a destruição da camada de ozônio.

Mas o nó ambiental chinês não pode ser plenamente compreendido sem que se levem em conta as pressões políticas domésticas, as lutas, a história e a cultura do país. Precisamos reconhecer a multiplicidade de atores que desempenham um papel no futuro da China e avaliar a diversidade geográfica, as disparidades regionais e a complexidade étnica e cultural, bem como o caráter único do sistema político autoritário chinês. Todos esses fatores terão um papel na determinação da "pegada ambiental" e dos impactos transnacionais futuros da China. Como os chineses vão superar os desafios que estão enfrentando e qual dinâmica afeta suas escolhas?

E os desafios não serão pequenos. O Banco Mundial revelou que 20 das 30 cidades mais poluídas do mundo estão na China, principalmente em consequência do uso intensivo de carvão - a cidade de Linfen, na província de Shanxi, é a mais suja de todas. A alta taxa de crescimento econômico - próxima de 10% ao ano entre 2000 e 2011 - deve sofrer um pesado desconto quando se incluem os custos ambientais em dias de trabalho perdido, mortes prematuras e despesas de combate à poluição. Os esforços de algumas autoridades públicas e pesquisadores para elaborar uma estimativa do "produto interno bruto verde" para a China estão parados desde 2004, em parte pela sensibilidade política da iniciativa e pela dificuldade de obter estatísticas confiáveis.

A poluição do ar é um problema enorme. A questão chamou a atenção internacional durante os preparativos para os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, mas é ainda mais grave em outras partes do país. Doenças pulmonares, como tuberculose e câncer, prevalecem de tal forma que estão bem documentadas as "aldeias do câncer" chinesas - lugares em que as taxas de mortes por câncer causado pela poluição do ar e da água estão bem acima da média nacional.

Por outro lado, a poluição severa da água afeta 75% dos rios e lagos chineses e 90% das águas subterrâneas urbanas, sendo que 28% dos rios do país foram classificados na categoria 5 (a pior numa escala de 1 a 5) - são tão tóxicos que se tornaram imprestáveis ao uso agrícola. Segundo a Academia de Ciências Sociais da China, grandes lagos, como o Tai, no leste do país, e o Dianchi, na província de Yunnan, estão também na categoria 5. Um estudo de 2007 da OCDE revelou que centenas de milhões de chineses bebem água contaminada por arsênio, flúor, esgotos não tratados, fertilizantes e pesticidas.

Além dos problemas de poluição, os aquíferos subterrâneos estão sendo rapidamente esgotados porque seus usuários cavam poços cada vez mais fundos. A diminuição dos lençóis freáticos no norte da China coloca em risco o abastecimento de Pequim. O grande rio Amarelo não flui de maneira regular no seu caminho até o mar. Em 1997, o pior ano até agora, ele não conseguiu atingir o delta oriental por 226 dias, tendo ficado praticamente seco. Num livro originalmente publicado em chinês, em 1999, o ativista contra a poluição da água Ma Jun afirma que 400 de 600 cidades chinesas pesquisadas enfrentavam escassez de água, incluindo 30 das 32 maiores. O Banco Mundial estimou que mais de 300 milhões de pessoas na área rural da China não têm acesso a água potável segura. Na tentativa de lidar com essa ameaça, o governo chinês está construindo um canal triplo no âmbito do Projeto de Transferência de Água Sul-Norte, com o objetivo de deslocar água do rio Yangtzé para o Amarelo, um megaprojeto com enormes implicações sociais e ambientais.

Dada a severidade desses e de outros problemas arraigados, como desflorestamento, erosão, desertificação, poluição por metais pesados, salinização, perda de terras aráveis, chuva ácida e perda de biodiversidade, o tratamento dado pela China à sua crise ambiental tornou-se crítico para a estabilidade do país e para a legitimidade do governo. Aliás,¬ os desafios ambientais são tão graves e centrais para a forma de "ascensão" da China que não é exagero dizer que eles não podem ser separados de sua identidade nacional e da capacidade do governo de sustentar o povo chinês. A degradação ambiental ameaça a estabilidade social - cada vez mais protestos ambientais fazem o Estado temer uma agitação social mais ampla. Estima-se que os "incidentes ambientais de massa" provocados por poluição local cheguem a 5?000 por ano, e alguns cálculos colocam esse número muito acima disso. Muitos deles envolvem apenas uma pequena multidão, resolvidos em questão de horas, enquanto outros envolvem milhares de pessoas e paralisam cidades importantes.

Os controles do Partido Comunista e dos governos estaduais estão em jogo quando eles tentam alcançar objetivos contraditórios. Eles precisam melhorar os níveis de vida material num país cujo interior ainda é desesperadamente pobre e cuja classe média está apenas começando a descobrir as alegrias do consumo após décadas de privação. Ao mesmo tempo, precisam lidar com acidentes industriais, com os custos ambientais decorrentes da produção de uma fatia tão grande dos bens de consumo mundiais e com a resistência crescente à poluição tóxica. Embora disponha de algumas das melhores leis e regulamentos ambientais, a burocracia chinesa enfrenta desafios imensos em sua implantação. Apesar do esforço real de algumas agências e autoridades, eles parecem frequentemente fracos diante das forças poderosas da corrupção, das estruturas de autoridade fora do alcance da lei e dos incentivos para manter o crescimento econômico em detrimento de outras considerações. A sociedade civil chinesa ainda é fraca e não tem a confiança dos poderes centrais, de modo que as tentativas de lidar com problemas ambientais graves "de baixo para cima", por meio da pressão pública, também são inadequadas. Quando se considera, além disso, que há fatores culturais que enfatizam o consumo generalizado e a desconfiança do governo, os desafios parecem ainda maiores. A China deixou rapidamente de ser um país menos desenvolvido para se tornar um país tradicional, e agora já se tornou uma superpotência. A questão-chave é se esse desenvolvimento sem precedente será "sustentável". No contexto chinês, o problema pode ser expresso da seguinte forma: os chineses de hoje poderão almejar uma vida saudável sem roubar recursos naturais de seus filhos ou de populações vulneráveis no país e no exterior? Poderá o povo chinês ter o direito inerente a padrões de vida mais altos desfrutados no mundo desenvolvido? Tais padrões serão sempre possíveis? Em que medida os problemas ambientais chineses são decorrência dos padrões de consumo do restante do mundo? As cidades chinesas poderão melhorar o meio ambiente sem deslocar a poluição para outras regiões mais vulneráveis? A China conseguirá lidar com a pobreza aguda em boa parte do extremo oeste do país, enquanto a parte oriental da nação enriquece? O planeta conseguirá sobreviver a essas demandas e conquistas?

A dinâmica da injustiça ambiental tende a empurrar os custos da poluição para os mais vulneráveis e politicamente fracos. Um movimento antipoluição bem organizado em um lugar pode resultar na abertura de uma fábrica em outro. Pressões para limpar o ar em Pequim deslocaram a indústria para áreas remotas e desviaram recursos de outros projetos. Áreas rurais se tornaram aterros sanitários para o lixo urbano. Paí¬ses pobres arcam com o grosso da poluição de consumidores ricos. Em linhas gerais, os danos ambientais tendem a se deslocar de áreas ricas para as pobres, enquanto os recursos naturais são extraídos, em escala desproporcional, das áreas remotas e menos desenvolvidas para alimentar o crescimento econômico dos países mais desenvolvidos, entre eles a China. À medida que essas tensões e contradições se tornam mais evidentes num mundo que se globaliza, mas depende de recursos naturais limitados e em declínio, uma atenção crescente é dada ao desafio de alcançar a justiça ambiental ao mesmo tempo em que se atendem às necessidades da população mundial em crescimento.

ESPERANÇA E DESESPERO

Em apenas uma geração e meia, a China experimentou uma transição que agora atinge cada faceta do país, incluindo o governo, o povo, a sociedade civil e mesmo características culturais intangíveis, como identidade e tradição. A rápida abertura econômica e a lenta distensão política mudaram drasticamente o cenário, tanto física como metaforicamente, de um modo inimaginável algumas décadas atrás. Quando olhamos a China de hoje e tentamos imaginar o futuro de seu meio ambiente, é fácil ficarmos abismados com a enormidade das forças e dos desafios do país.

O meio ambiente da China é afetado por numerosas forças que se inter-relacionam e se contrapõem. Considere, por exemplo, a questão demográfica. Embora persista um debate sobre o crescimento da nação mais populosa do mundo, a simples quantidade de pessoas é uma força poderosa para limitar as opções chinesas. No centro do desenvolvimento do país está a luta para proporcionar riqueza e conforto a mais de 1 bilhão de pessoas. Não é possível exagerar a pressão que essa escala de pobreza traz para a tomada de decisão dos dirigentes. A China certamente conseguiu tirar partido da globalização, tornando-se uma fabricante mundial e expandindo drasticamente sua economia. Entretanto, com o crescimento de sua riqueza, a nova classe média agora pede ar e água limpos na medida em que seus desejos materiais prenunciam problemas para o meio ambiente, um impulso contraditório que os dirigentes têm dificuldade de acomodar.

A primeira resposta do governo às reivindicações de melhoria dos padrões de vida foi a liberalização e a descentralização dos controles econômicos, mas isso causa um dilema para o sistema de Estado autoritário. O governo central cedeu alguns de seus poderes no esforço para expandir a economia. Contudo, o "milagre econômico", que aumentou a renda e o produto interno bruto, é agora também uma maldição, porque o Estado luta para evitar uma destruição mais intensa dos limitados recursos naturais da China e começa a enfrentar a confusão gerada por décadas de estragos ambientais. O governo reconheceu os níveis crescentes de danos ambientais - resultantes, em parte, de um senso entre autoridades de nível médio e líderes industriais de estar acima da lei - e instituiu regulamentos ambientais de categoria mundial. Mas essas leis são precariamente aplicadas. A lacuna de execução decorre em parte de um conflito entre o crescimento ao estilo ocidental e um meio ambiente saudável.

O rolo compressor da globalização é a força por trás de muitas mazelas ambientais da China. Mas a globalização pode ser também uma fonte de esperança e estímulo para a inovação. A China continua a realizar progressos no desenvolvimento e na produção de tecnologias limpas - em particular, investe pesadamente em áreas como energia solar e eólica, tecnologia automobilística limpa e usinas de dessalinização, colocando-se em condições de colher lucros na economia global no futuro. Isso talvez represente um caminho alternativo para o desenvolvimento da China, um modelo que pode conjugar incentivos econômicos e ambientais. Podemos ver evidências da mudança quando grupos da sociedade civil exercem novos direitos de participar de decisões ambientais, expressam seus pontos de vista na mídia e fazem manifestações, por vezes com o beneplácito do governo. É claro que esses atores da sociedade civil têm limites claros de ação. O Partido Comunista continua atento às agitações sociais que possam desafiar a autoridade central, monitorando e controlando de perto os movimentos sociais modernos. A história recente da China incluiu períodos negros de isolamento. A abertura exigida por uma sociedade globalizada e as comunicações modernas ainda são vistas com cautela, já que o governo procura controlar o fluxo de ideias enquanto permanece aberto para o mundo. O Estado está equilibrando a necessidade do controle centralizado com a necessidade de maior participação pública, mais transparência e maior confiança no estado de direito. As ONGs precisam agir com cautela, afirmando seus direitos, manifestando queixas e pressionando as autoridades e a mídia, mas sem irritar o governo e sem provocar uma repressão.

A sociedade civil emergente também enfrenta questionamentos sobre seus próprios objetivos, na medida em que se entrelaça de maneira incomum com a economia e a demografia de uma China em transformação. Uma classe média fortalecida começa a exigir mais do governo no que diz respeito a segurança alimentar e padrões de poluição. O movimento ambiental está crescendo, como fica evidente nas reportagens sobre protestos contra a poluição. Cidades se tornaram mais limpas depois que grupos comunitários e cidadãos frouxamente organizados confrontaram os planejadores do governo e os empresários. Mas, enquanto ONGs pressionam o governo a agir, também elas precisam fazer autocrítica. Poderá o movimento ambientalista defender um caminho alternativo e, ao mesmo tempo, obter o respaldo de uma classe média centrada muitas vezes na aquisição de riqueza e no consumo generalizado? Protestos bem-sucedidos contra empresas poluidoras podem fechar uma fábrica, mas frequentemente levam a sua realocação para uma comunidade mais periférica e menos influente. Problemas ambientais graves estão ocorrendo em comunidades de minorias étnicas, onde a apropriação de recursos naturais é precariamente disfarçada como programa de desenvolvimento. Nessas regiões, os pobres arcarão com o ônus mais pesado das mudanças climáticas. Tais comunidades sofrem preconceito racial e de classe. Esse será um campo em evolução para o florescente movimento ambientalista chinês, no momento em que ele procura equilibrar os desejos de sua base de apoio urbana com ideias mais amplas de justiça ambiental.

É possível afirmar que o governo nacional - ou parte dele - está avançando lentamente para uma aliança maior com o movimento verde, como parte de uma tendência geral rumo a uma sociedade civil ampliada e ao estado de direito. Autoridades de alto escalão reconhecem que limpar o meio ambiente requer uma combinação de leis claras, padrões e práticas transparentes, desenvolvimento de instituições, definição de direitos, um processo democrático, estímulo à participação pública e engajamento da mídia. Os esforços impostos de cima para baixo são importantes, mas alguma forma de democracia verde é fundamental. São necessárias reformas adicionais para encorajar esses grupos e dar-lhes mais alcance, profundidade, influência e proteções legais. Ativistas, organizações e indivíduos ocidentais podem encontrar maneiras de apoiar esses grupos, que têm uma tarefa árdua em sua tentativa de desviar forças poderosas para um caminho diferente.

O povo chinês tem motivações poderosas para melhorar sua qualidade de vida. A geração mais velha não esqueceu os dias de extrema pobreza, de trabalho extenuante e de sacrifícios na luta contra a fome e a morte, enquanto os mais jovens estão ansiosos para se juntar ao mundo e aproveitar a vida. Mas podemos ver uma complicação cultural no desenvolvimento da China em razão da identidade nacional do país e da história genealógica de uma cultura homogênea que já foi motivo de inveja do mundo. Enraizado na cultura da nação está o orgulho de seu antigo status de Reino do Meio, ou o país que fica no centro do mundo. Nem o consumidor nem as escolhas políticas conseguem se livrar da carga de insegurança entranhada na estatura global do país há gerações. Hoje os chineses desejam fortemente reafirmar seu status - melhorar a imagem, por assim dizer - e, finalmente, têm meios para fazê-lo. Mas essa insegurança também pode causar um superaquecimento da economia e alimentar um consumo de efeitos nefastos.

"FICAR RICO É GLORIOSO"

Uma longa história de desconfiança pública em relação à autoridade central também frustra a capacidade do governo de enfrentar desafios. A prática tradicional de respeitar hierarquias e buscar alívio na influência de alguém mais poderoso remonta ao tempo dos imperadores e foi exacerbada nos anos de Mao e durante as reformas que se seguiram. Após 1978, quando o lema "Ficar rico é glorioso" foi adotado por Deng Xiaoping, o controle do Estado afrouxou. Mas havia poucas regras e poucos mecanismos para impedir os novos empresários de ganhar dinheiro explorando recursos naturais e descartando as sobras. Nos tempos antigos, era o imperador quem vivia distante e era incapaz de aplicar éditos. Na nova China, os reguladores é que são distantes e ineficientes. Embora a aplicação da lei esteja melhorando, essa dinâmica ainda traz exemplos localizados de intensa poluição de terras e de cursos de água públicos. As pessoas e as pequenas fábricas não são as únicas a burlar os regulamentos. Mesmo algumas das maiores corporações da China já foram multadas por não obter licenças ambientais.

Afirmar o império da lei e criar um ethos em que os cidadãos se sintam capacitados a ajudar a preservar e a desfrutar um meio ambiente limpo exigirá um esforço enorme. Crenças e instituições antigas e tradicionais - confucionismo, taoís¬mo e budismo - podem oferecer alguma orientação. Elas falam da necessidade de promover relações sustentáveis, harmonia e respeito pelo mundo não humano. Para muitos jovens que se veem distantes desse passado e crescem num país intensamente materialista, porém, as tradições representam pouco. Mas outras tradições podem ser invocadas. Grupos ambientalistas enfatizam o amor incondicional à natureza, encorajando caminhadas ao ar livre e a prática de fotografar ambientes naturais, o plantio de árvores e a preservação. O desejo de proteger a China como uma força condutora e positiva no mundo é também um sentimento poderoso que forma uma identidade patriótica. Se essas novas convicções e as velhas tradições forem combinadas, poderão prevalecer em face da corrupção, do materialismo e de um governo central profundamente avesso a movimentos políticos e sociais?

Finalmente, precisamos considerar o complexo desafio colocado pela divisão entre as regiões orientais e ocidentais do país. Vastas extensões da China ocidental, que abrigam camponeses rurais e minorias étnicas, continuam relativamente intocadas pela modernização e pela riqueza crescente do leste. A China de Pequim e Xangai é um lugar distinto do Tibete ou da Mongólia Interior, ou mesmo das áreas rurais do país. As pessoas que aí vivem permanecem excluídas de boa parte do desenvolvimento. A simples existência desse número de pobres impulsiona as metas de crescimento. Mas os pobres tendem a se beneficiar menos, na medida em que a riqueza escoa muito lentamente das megalópoles urbanas para as aldeias rurais, e as desigualdades de renda pioram a cada ano. Quando se observam mais de perto essas regiões, suspeita-se que as tentativas do governo de "desenvolver a infraestrutura" não passam, com frequência, de estratégias para extrair recursos naturais à custa de uma população minoritária e abandonada. As campanhas de desenvolvimento, e mesmo algumas iniciativas ambientais, como a restauração das pastagens, podem também resultar no deslocamento de minorias ou em assimilações forçadas.

Embora seja cedo para afirmar que a China atingiu um ponto sem volta em assuntos de degradação ambiental, os desafios sugerem que o país terá de enfrentar uma longa lista de problemas no seu esforço para construir o que chamam de sociedade harmoniosa e sustentável.

* Qual é o objetivo final do modelo de desenvolvimento econômico adotado pela China? O país pode arcar com os custos de uma trajetória moldada no Ocidente? O restante do mundo pode arcar com os custos disso?

* Onde se encaixa o regime no quadro da governança ambiental? O regime terá vontade política ou capacidade para evitar uma mentalidade de desenvolvimento a qualquer custo?

* Qual é o futuro do movimento ambientalista nacional, ainda que incipiente? Poderá ser inclusivo sem fazer concessões? Poderá formar e manter relações úteis com o movimento ambientalista internacional?

* O povo chinês conseguirá evitar os excessos do Norte global, que transferiu tantos danos ambientais para o Sul em desenvolvimento?

* O modelo chinês está enfrentando problemas mais amplos, como a injustiça e a opressão dos pobres, marginalizados e minorias? Ou o modelo econômico está apenas contribuindo para maior exploração dos que vivem à margem da sociedade?

* Onde se encaixa nisso tudo a comunidade internacional? O mundo é responsável pela China, e vice-versa? Que lições a China tem para dar ao restante do mundo? Se a China está se tornando mais verde, isso está ocorrendo à custa de populações vulneráveis em outras partes do mundo?

POR UM NOVO RUMO

Reconheçamos que existe alguma coisa profundamente errada na maneira como administramos o planeta. Precisamos rejeitar o impulso ao crescimento econômico a todo custo e estabelecer um conceito diferente de segurança - humana, estatal e global -, que esteja associado ao respeito às limitações dos recursos não renováveis do planeta. Precisamos compreender que a "pegada ecológica" de uma nação só pode ser corretamente medida quando se consideram tanto a extração doméstica de recursos naturais quanto a internacional. Todos os problemas ambientais são globalmente compartilhados. Não podemos nem exportá-los nem construir um muro protetor para mantê-los fora. Precisamos criar o espaço político para permitir que países como a China tenham um melhor desempenho, dar-lhes satisfação de que os países desenvolvidos estão fazendo sua parte para lidar com os problemas pelos quais as sociedades industriais são as principais responsáveis. Ao mesmo tempo, o mundo precisa ajudar os países em desenvolvimento a reduzir alguns dos piores impactos da poluição e das mudanças climáticas que serão sentidos de maneira mais dura pelas populações pobres do planeta. A China poderá ser efetivamente um laboratório moderno para projetar um novo caminho. Sob muitos aspectos, o caminho futuro da China será o caminho do planeta.

Hoje, os observadores da China se colocam em dois campos: os críticos e os defensores. Mas precisamos ver o quadro por inteiro - bom e ruim - e pensar estrategicamente. Podemos remover obstáculos para a transferência e a difusão de tecnologias limpas e criar mecanismos internacionais fortes para ajudar a China e o restante do mundo em desenvolvimento a evitar a exacerbação da crise ambiental, pela qual o mundo desenvolvido é em grande parte responsável. Podemos apoiar grupos de cidadãos chineses oferecendo oportunidades para que seus líderes possam viajar ao exterior e estabelecer redes de relacionamento com seus pares. Podemos também apoiar as vítimas de repressão política, lembrando seus nomes em fóruns internacionais e incentivando o governo chinês a dar mais espaço à liberdade de expressão e à participação pública. Finalmente, podemos ficar mais sensíveis aos problemas de justiça ambiental, considerando os impactos dos padrões de consumo globais sobre a extração de recursos naturais. Ainda que a consciência das dimensões éticas do nosso comportamento não seja, por si só, suficiente para afastar-nos de padrões destrutivos, ela poderá trazer à luz o que está escondido e dificultar a persistência de antigos métodos.

 

*Judith Shapiro - Uma das maiores autoridades mundiais em sustentabilidade, é diretora do Programa de Recursos Naturais e - Desenvolvimento Sustentável na American University. O artigo é um capítulo de seu próximo livro, China’s Environmental Challenges, a ser publicado nos Estados Unidos em junho (mais informações em www.politybooks.com).

 

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